O MITO DE SÍSIFO E O HOMEM CONTEMPORÂNEO

~ 0 min
02/06/2011 15:05

O MITO DE SÍSIFO E O HOMEM CONTEMPORÂNEO

Ana Luiza Iughetti Feres

Terapeuta Holística

CRT 42969

Propositura de Palestra para

Holística 2011

Ribeirão Preto

2011

RESUMO

A análise dos mitos é fundamental na Psicoterapia proposta por Jung. Os símbolos do inconsciente coletivo que os mitos trazem nos permitem perceber outras dimensões do nosso próprio inconsciente e caminhar no processo terapêutico. O mito de sísifo nos ajuda a refletir sobre vários aspectos específicos da sociedade contemporânea e sofrimentos humanos atemporais como a dicotomia vida e morte, o trabalho interior e a religiosidade; trazendo vários "insights" para o processo terapêutico.

 

 

SUMÁRIO

  1. Introdução
  1. O Mito de Sísifo
  1. Conceitos de Psicologia Analítica
  1. Imagem Mitológica de Sísifo e o Homem Contemporâneo
  1. Considerações Finais
  1. Referências Bibliográficas

 

  1. INTRODUÇÃO

De que nos fala o Mito de Sísifo? Da morte? Do trabalho? Da disputa entre humanos e deuses? Do castigo dos deuses? Que relação podemos fazer entre o que nos fala esse mito e os processos psíquicos do homem contemporâneo?

A Psicologia profunda de C.G.Jung descobriu que há uma relação muito próxima entre os processos psicológicos do homem moderno e a imensa gama de conhecimento que nos foi deixado como herança pelos povos antigos e que podemos conhecer através da mitologia.

Para Jung, o mito é um estágio intermediário entre a cognição inconsciente e consciente, como uma ponte necessária e facilitadora. É como um "tradutor" dos Arquétipos - que formam o psiquismo humano - decodificando-os a partir das mais diversas mitologias do mundo. Podem-se estabelecer muitos paralelos entre os mitos e o que está acontecendo na psique e na vida de uma pessoa ou sociedade.

Esse é o objetivo dessa palestra: entender o Mito de Sísifo à luz da Psicologia Junguiana, para que possamos ampliar e aprofundar a compreensão desse mito, analisando suas possíveis implicações na psique do homem contemporâneo.

 

  1. O MITO DE SÍSIFO

Segundo Brandão (1996), Sísifo era originário da cidade grega de Corinto, um rei que desafiou os deuses e até mesmo a morte. Diz que Zeus observou a filha Egina do deus do rio, Asopo e a raptou. Quando seu pai quis saber sobre o ocorrido, ninguém queria falar com medo da reação de Zeus.

Mas Sísifo percebeu ali uma grande oportunidade e não pensou em deixá-la passar. A cidade de Corinto tinha na época um problema bem sério, não havia em seu perímetro uma fonte de água doce. O povo precisava ir buscar água em lugares distantes para satisfazer suas necessidades. Sísifo conversou com o deus do rio e fez um acordo, dava informações em troca de água. O deus concordou e uma fonte nasceu dentro da cidade de Corinto.

Asopo foi atrás de Zeus e este teve de devolver-lhe a filha que havia roubado. Zeus sabia quem ousou dar as informações e chamou seu irmão, Hades, o senhor do inferno e este mandou a morte, Tânatos, para buscar Sísifo.

A morte com missão precisa apareceu no mundo dos vivos. Geralmente recebida com grande espanto e terror pelas pessoas, ficou surpresa quando o esperto Sísifo a convidou para sentar-se em sua mesa para comer e beber. Foi uma boa conversa com piadas e descontração. Então, Sísifo ofereceu a ela um par de algemas que havia feito. Como já havia confiança e boa vontade entre eles, a morte colocou as algemas no pulso. Só depois de certo tempo é que ficou claro que ela, a morte havia ficado prisioneira de Sísifo.  

Um fato desses abala o Universo todo. Nada e nem ninguém morria, pessoas, plantas ou animais. Com a morte no cativeiro haveria muitos efeitos colaterais: como superpopulação e aqueles que estavam doentes permaneceriam assim sem esperança de alivio. A vida sem a presença da morte faz pouco ou nenhum sentido. Até o tempo e a evolução param. Nem a guerra faz sentido, pois os soldados mortos em luta se levantam para agir de novo. Isto também enfureceu o deus da guerra Ares. A morte é um dos poucos controles que os deuses têm sobre os humanos.

Zeus, que é o senhor do Olimpo, percebeu a confusão que Sísifo havia arrumado e mandou o próprio Ares para buscá-lo e levá-lo para o inferno. Desta vez a missão foi cumprida com sucesso.  Ares libertou a morte e levou a alma de Sísifo. Mas as coisas não acabaram nisso. Sísifo ainda tinha outros truques para executar.

Ele havia instruído sua esposa para não enterrar seu corpo e nem fazer os rituais fúnebres exigidos pelos deuses. Chegando na terra dos mortos, Sísifo foi reclamar que seu cadáver não havia sido devidamente enterrado. Pediu permissão para voltar para a Terra e castigar sua esposa por causa do desrespeito aos deuses. Hades concedeu a ele três dias para ir e retornar aos infernos. Mas quando chegou na superfície ficou evidente que não tinha nenhuma intenção de retornar novamente. Mais uma vez ele se saiu bem no confronto com os deuses.

Para resolver o problema de modo definitivo, Zeus mandou Hermes, o mensageiro dos deuses e aquele que acompanha as almas dos mortos até o outro mundo. Hermes capturou a alma de Sísifo e a levou para Hades, depois enterrou seu cadáver com os rituais necessários, exigidos pelos deuses e encerrou o assunto. No inferno o astuto Sísifo recebeu o seu castigo: devia rolar por toda a eternidade uma pedra montanha acima para ver em seguida a mesma voltar ao ponto de origem e ele ter que repetir todo o ciclo novamente.

  1. CONCEITOS DE PSICOTERAPIA ANALITICA

O Ego: O centro da consciência. 

Para Jung o ego é um complexo - o principal -, formado a partir dos registros da memória e das sensações corporais, tendo base somática. O ego não é equivalente à totalidade da consciência, é apenas o seu centro, sendo que todos os acontecimentos da vida precisam entrar em contato com ele para se tornar conscientes - pensamento, emoções, idéias, experiências, etc.  

O ego tem diversas funções, como promover a adaptação da pessoa às exigências da vida, fazer diferenciação de conteúdos conscientes e inconscientes e mediar prazer e realidade. Ele organiza os conteúdos da vida psíquica, avalia, critica e raciocina em busca de soluções para os problemas que a pessoa enfrenta.

Uma consideração importante sobre a consciência é que não pode haver elemento consciente que não tenha o ego como ponto de referência. Assim, o que não se relacionar com o ego não atingirá a consciência. A partir desse dado, podemos definir a consciência com a relação dos fatos psíquicos com o ego. (JUNG, 2001, p. 7)

A consciência do ego tem uma importante característica de seletividade, o que equivale a dizer que certos conteúdos tornam-se conscientes e outros não. Esses conteúdos eliminados vão aos poucos formando o que conhecemos como inconsciente pessoal ou a sombra do próprio ego, onde mesmo potenciais criativos podem ficar reprimidos.

O ego, em seu processo adaptativo, vai precisar formar algumas defesas, sendo algumas úteis e necessárias, outras neuróticas, e outras ainda, psicóticas e psicopatológicas. O ego é um complexo funcional no campo da consciência que é variável de indivíduo para indivíduo, variando em extensão e profundidade.

A consciência, na opinião de Jung, não é algo fixo e imutável. Ela sofre modificações constantes e evolui ao longo do tempo. Após a estruturação do ego, este precisa se defrontar com o inconsciente para continuar evoluindo. É preciso que o ego consiga estabelecer contato com o inconsciente e consiga também assimilar seus conteúdos para não sofrer a estagnação.

Complexos

Todas as experiências modificam a bioquímica celular. A cada nova vivência, ficam marcas na memória celular. É nossa capacidade de ser afetado (afetividade) de modo variado e diferenciado pelas coisas que nos cercam que faz com que não sejamos robôs.

Quando entramos em contato com algo que nos afeta é que esse algo passa a ter significado. E a repetição de experiências que têm valor fundamental e vão se associando por semelhança e analogia em torno de uma experiência centralizadora, é que dá origem aos complexos.

Complexo é então um conjunto de experiências capazes de nos afetar em torno de uma experiência centralizadora. É a unidade funcional básica da psique. Ou seja, conteúdos com forte carga emocional e energética porque estão associados, por semelhança e analogia, às experiências centralizadoras. É o que mobiliza a nossa energia psíquica.

Os complexos contaminam todas as nossas percepções das coisas e por isso as experiências da infância são tão importantes, porque formam as primeiras memórias celulares ou os primeiros complexos. Em função dos complexos, só ouvimos o que queremos e sentimos o que podemos. Somos uma rede de complexos que são acionados por vários mecanismos possíveis

Inconsciente Coletivo e Arquétipos

Diferente de Freud que considerava que o inconsciente era formado a partir de conteúdos reprimidos somente, portanto individuais, Jung descobriu que há camadas na psique que nunca foram conscientes e nem se formaram de conteúdos das experiências pessoais reprimidas.

Essa dimensão do inconsciente, que Jung chamou de Inconsciente Coletivo, não diria respeito aos conteúdos individuais reprimidos do sujeito em questão, mas sim a símbolos comuns a toda a humanidade, disponíveis para todos. Esse inconsciente forma a base do nosso psiquismo e é formado pelos Arquétipos.

Arquétipos são imagens primordiais carregadas de energia que advém das experiências coletivas que reforçam, a todo o momento, essa carga energética, que fica à disposição da humanidade, para ser acessada, na forma de imagens primordiais, a cada necessidade adaptativa. É a nossa matriz, fonte geradora de material para a consciência. Esta matriz produz um conjunto enorme de fenômenos, como sonhos, visões, os chamados acontecimentos espíritas e afins. As imagens arquetípicas são o suporte energético para o funcionamento adequado da consciência. Para que o ego seja revigorado sempre, precisa do contato constante com sua usina de força.

Dei o nome de arquétipos a esses padrões, valendo-me de uma expressão de Santo Agostinho: Arquétipo significa um "Typos" (impressão, merca-impressão), um agrupamento definido de caracteres arcaicos, que, em forma e significado, encerra motivos mitológicos, os quais surgem em forma pura nos contos de fadas, nos mitos, nas lendas e no folclore. (JUNG, 2001, p.34, grifos do autor)

Jung, ao longo de sua vida, deixou muitos estudos a respeito dessa camada mais profunda do psiquismo humano, como a alquimia, os contos de fada, a gnose, as religiões comparadas e a mitologia.

Através do conceito de arquétipo e do inconsciente coletivo foi possível para a psicologia abrir caminho para a compreensão de rico material pertencente aos mitos e ajudar o homem moderno na compreensão de todas as dimensões de si.

A função transcendente e a dinâmica psíquica

Esta é a função que, segundo Jung, no processo de desenvolvimento do ego vai ligar a vida consciente ao inconsciente de modo construtivo e cooperador. O Ego e o Self - centro da psique - de modo geral não estão em harmonia, podendo até mesmo estar em oposição.

Como o inconsciente se comporta de modo compensatório ou complementar em relação à consciência, e vice-versa, para a Psicologia Analítica a transcendência de uma atitude a outra ocorre a partir da busca de significado e finalidade dos conteúdos que o inconsciente está trazendo.

Jung entendia a dinâmica da psique, dentro do conceito da complementariedade - não há opostos com começo e fim e sim um continuum de experiências entre os opostos que vão se modificando e afetando todo o tempo.

É esse jogo de forças que vai produzir os símbolos. Símbolo = aquilo que une. Nossos símbolos individuais - nossos sonhos, nossas marcas, emoções e sentimentos, nossa forma de funcionar no mundo - é o que une a nossa expressão consciente ao nosso inconsciente mais profundo, tendo no processo de individuação seu ponto máximo.

Energia Psíquica para Jung, diferente de Freud, não se limita à energia sexual, mas diz respeito à energia vital. Energia não é algo que se define, apenas sabemos a sua manifestação. Energia que vem de ergos = que produz trabalho, modificação.

Nas palavras de Grinberg (1997, p.9) "Assim como calor, luz e eletricidade são manifestações diferentes da energia física, fome, sexo e agressividade seriam expressões variadas da energia psíquica."

A dinâmica psíquica se estabelece num jogo de forças entre o consciente e o inconsciente. Quando uma imagem surge na consciência tem uma força, resultado energético que tem a capacidade de nos afetar. E a consciência vai lidar com essa imagem de diferentes maneiras: projeção, repressão, assimilação ou integração.

Sacrifício

No processo de evolução psicológico chega um momento que o sacrifício se impõe de modo natural, sendo que o ego deve abrir mão do que está sendo solicitado, pois do contrário vem a estagnação.

Para a Psicologia, este termo descreve o sacrifício da energia psíquica que está organizada numa dada direção. O modelo na civilização cristã ocidental é o sacrifício de Cristo na Cruz, para transcender o mundo e alcançar a ressurreição, cumprindo, assim a vontade de Deus. Este pode ser vivido como um momento de grande tensão e pavor, como ficou gravado na história cristã.

Na relação Ego-Self, chega-se a um desses momentos em que ao ego é solicitado algo muito parecido. O ego pode não estar preparado para essa situação e entrar em conflito e sofrimento. Esses são os momentos de transição de uma situação ou estado a outro.

O próprio Jung é exemplo disso, quando, para continuar avançando no que acreditava, precisou sacrificar sua amizade com Freud, carreira universitária e de médico no hospital psiquiátrico. Vem disso a perda do rumo da vida, a desorientação, a falta de solo firme que o ego está acostumado. O ego precisa renunciar livremente sem ter garantias do que vai receber e quais os novos rumos a vida terá.

O sacrifício equivale a uma morte simbólica e, portanto, a um renascimento.

Sombra

Para Magaldi, "a sombra representa na psicologia junguiana os aspectos inconsciente de si mesmo, bons e maus, que por algum motivo e ego não consegue integrar." (2009)

Podemos dizer que a sombra é a parte do Self que foi rejeitada pelo ego consciente. A sombra compõe-se de vários aspectos, indo desde a sombra pessoal, familiar, social em suas muitas facetas, até o arquétipo da sombra. Este último apresenta dificuldades bem maiores de conscientização, devido estar muito longe da experiência comum. Sua vivência pode levar ao estado de possessão, como na história de Fausto ou no confronto entre Cristo e o diabo, como nos conta o novo testamento.

A sombra também funciona como o elemento provocador, irritante, perturbador. Aquele que desaloja a pessoa de seu estado de inércia psíquica para movimentá-la em outra direção, mesmo que seja contra a sua vontade. Às vezes ameaça a consciência de regressão e desintegração.

Em geral, como há pouca consciência de sua constante presença, ela é encontrada em projeção. Este mecanismo parece ser o mais eficaz para localizá-la. Nos sonhos aparece como pessoas do mesmo sexo e nos mitos, ela é o vilão que combate o herói. A sombra possui enorme quantidade de energia que quando aceita, passa a ser útil ao ego, tirando o mesmo de suas limitações e bloqueios.

Individuação

Processo de desenvolvimento psicológico através do qual o indivíduo vai se aproximando cada vez mais de sua singularidade e totalidade. Para Jung, há no ser humano uma tendência, um impulso ou instinto, de tornar- se um ser cada vez mais completo do que se é no momento.

O ego não é a totalidade da psique. Há um centro maior que abarca o ego e está muito além dele. O ego é o representante do Self (Ser Total), mas este é sempre percebido por cada um de nós como maior do que aquele. Porque temos uma disposição inata para a transcendência. Transcender nossa condição humana de existir. Existir = ex-estar = "condenados ao futuro" na expressão de Heiddeger. Estamos sempre diferentes a cada momento, sendo projetados, ou seja, somos sempre um projeto de ser, uma promessa de ser e essa é a angústia vital do ser humano. Tudo com uma única certeza, a da morte.

É o ego que faz o processo de individuação. Precisa desapegar do corpo e se entregar à Alma. Desde que nascemos buscamos nos adaptar ao ambiente, às regras, à família e à sociedade, como forma de sobreviver e ser amado, mas essa adaptação pode nos afastar de nosso verdadeiro eu, nossa Alma inata que viemos realizar.

Se não houver o confronto entre o Self e o ego, não há oportunidade para nascer o novo ego, mais integrado ao Self. O analista vai ajudar a integrar as partes, sair do conflito, na sua função de cura vai ajudar a encontrar o caminho para integrar as partes dissociadas. Esse é o início do processo de individuação.

A individuação é um processo que permeia toda a vida humana. É o potencial latente a ser trabalhado, vivido. Segundo Jung "Só aquilo que somos tem o poder de curar-nos" (JUNG, 2007, §258)

O processo de individuação, portanto, consiste em integrar nossas partes dissociadas, inconscientes, ao ego, consciência, para realizar o nosso Self, Si-Mesmo. Individuar é realizar o ser único que somos, nos diferenciando cada vez mais do comportamento em massa.

Assim, individuação não é um ego bem adaptado, que vive profundamente o mundo racional e que contribui para que o indivíduo leve vantagens materiais sobre os demais. A individuação vai desnudar o self dos vários invólucros da persona e das imagens primordiais que tanto interferem em nossa vida. Então, individuar-se não nos exclui do mundo, mas aproxima o mundo de nós. (MAGALDI, 2009)

Para Jung, nesse processo, a religiosidade é uma dimensão do homem que não pode ser negada. Jung coloca a religiosidade como uma função natural, inerente à psique, encontrada em todos os povos conhecidos.

A psicologia junguiana põe em relevo a presença, no âmago da psique, do arquétipo de Deus ("indistinguível do arquétipo do Self"), sem pretender jamais afirmar nem negar a existência de Deus como ser em si mesmo. (SILVEIRA, 1997, p.133)

Jung usa a palavra religião no sentido do religio = re e ligare. Ou seja, religar os aspectos conscientes (ego) às profundezas do inconsciente (Self), individuar-se.

Entre todos os meus doentes na segunda metade da vida, isto é, tendo mais de 35 anos, não houve um só cujo problema mais profundo não fosse constituído pela questão de sua atitude religiosa. Todos, em última instância, estavam doentes por ter perdido aquilo que uma religião viva sempre deu em todos os tempos a seus adeptos, e nenhum curou-se realmente sem recobrar a atitude religiosa que lhe fosse própria. Isto está claro, não depende absolutamente de adesão a um credo particular ou de tornar-se membro de uma igreja. (JUNG apud SILVEIRA, 1997, p.125-126)

  1. IMAGEM MITOLÓGICA DE SÍSIFO E O HOMEM CONTEMPORÂNEO

Se tentarmos ver em Sísifo um modelo de homem, ele então será alguém tão convencido de sua força, de sua inteligência e de suas capacidades criativas que se considerará imortal. Morte, mudança, renúncia, reveses, nada disso existe para ele. (KAST, 1997)

A morte é um controle poderoso que os deuses têm sobre os seres humanos. Seus mistérios nunca foram revelados a nenhum mortal que se tenha noticia. E Sísifo ousou desafiar a morte e o poder dos deuses.

O castigo que Sísifo recebeu - ficar rolando a pedra cume acima da montanha infinitamente, apenas para vê-la rolar montanha abaixo justo antes de alcançar o cume - foi em decorrência de ter trapaceados os deuses, fugindo da morte. Os truques de Sísifo estavam alterando a ordem estabelecida das coisas, da vida e da morte.

Vida e Morte. A dicotomia da existência que impulsiona, dá esperança, força para a realização. Vida e Morte, dois lados da mesma moeda; continuidade sem fim? Quando Sísifo desafia Zeus conseguindo a fonte de água para Corinto, está presente essa dicotomia também. Poder do Homem x Poder de Deus. Esse mundo e o outro mundo.  

Não podemos ver o mesmo comportamento no homem contemporâneo que desafia a morte com seus avanços tecnológicos, a medicina e suas técnicas de rejuvenescimento? Escravos da juventude e da saúde, com pânico da morte. Não querem morrer, querem vencer os deuses. Mas quando não há a perspectiva da morte, será a vida uma eterna repetição infinita?

Por outro lado, é a repetição de experiências, padrões de comportamento e situações, que permite a tomada de consciência e por conseqüência, mudança e evolução. Mas a repetição, paralisia no mesmo lugar, é uma forma de morte, pois sem possibilidade de mudança, conclusão de ciclos, não há vida.

Portanto, se vida é transformação, Sísifo está morto no seu esforço repetitivo? Mas ele pode ter se vingado mais uma vez porque a cada vez que Sísifo levanta a pedra montanha acima, uma nova esperança renasce de que novo fim aconteça.

Aqui aparece uma nova dicotomia que o mito traz - como saber até quando lutar, persistir, roubar um pouco mais de vida da morte e quando reconhecer que é sensato entregar-se, admitir a derrota, largar a pedra e seguir adiante.

Quantos na nossa sociedade sentem-se sobrecarregados com a quantidade ou qualidade do trabalho; trabalho não prazeroso na maioria das vezes e não tem coragem de largar a pedra e começar uma nova história? Ficar preso numa mesma luta constante, num mesmo objetivo, com a energia focada em uma única direção - seja o trabalho, ou qualquer outro pilar da vida - leva a uma morte em vida.

Talvez o modo como a maioria das pessoas vivencia a si mesmo atualmente, sem refletir e questionar a possibilidade de mudar, seja de fato um trabalho de Sísifo. Quando o homem contemporâneo foca no trabalho sua energia total, acreditando que do dinheiro daí advindo, virá a realização, a felicidade, ignorando outras necessidades de realização individual, coletiva e espiritual, pode ficar reduzido ao vazio da repetição infinita.

Assim o homem da sociedade capitalista é visto como alguém que se coisifica pela moral utilitarista, tendo como meta a redução da capacidade do homem produtor, suprimindo as alegrias e a paixão, condenando-o ao papel de máquina entregue ao trabalho contínuo sem trégua nem piedade. (MAGALDI, 2009).

Mas devemos olhar para o trabalho de Sísifo não apenas como o trabalho externo, mas como o trabalho interno, necessário ao homem para evoluir, integrar-se, individuar-se. No processo terapêutico, por exemplo, há uma repetição criativa de situações, pois a evolução é uma espiral que parece sempre voltar ao mesmo ponto. Mas a cada nova experiência, fica diferente a manifestação, o sentimento, a neurose.

Se Sísifo simboliza o ego e seu trabalho de criar mais e mais consciência, os deuses simbolizam o inconsciente coletivo e neste caso uma reação compensatória destrutiva, o que indica que a atitude da consciência é inadequada, para lidar com a situação.

Sísifo tinha uma relação conturbada com os deuses, de disputa constante, não dimensionando adequadamente as forças que estavam em jogo. Em terapia, ao longo do processo de individuação, quando o ego está isolado ou com uma relação destrutiva com o inconsciente, ele não consegue perceber que está em desvantagem frente à psique objetiva.

Com suas atitudes e comportamentos não adaptados, Sísifo se expôs à ira e vingança dos deuses - ou a uma reação destrutiva do inconsciente. O que fez teve conseqüências não só pessoais, mas também para todos. Sísifo não foi capaz de aceitar os desígnios dos deuses, seu destino. Tentou mudar a ordem da criação e a realidade humana.

Jung ressalta quando de seu confronto com o inconsciente o quanto é importante para o ego aceitar seu destino. No processo de individuação chega-se a um momento crucial, que é o momento do sacrifício. Ao ego é solicitado algo do qual não quer abrir mão. É uma situação angustiante. Há uma luta interna muito grande para abrir mão de coisas consideradas preciosas. Mas se isso não for feito, a evolução não avança.

O objetivo do confronto com o inconsciente é criar a função transcendente que vai unir os dois lados em conflito, procurando chegar a uma cooperação construtiva.

No mito de Sísifo parece-nos que isso não foi possível. A relação entre ele e os deuses era de disputa, de tentar vencer o inconsciente através de truques e artimanhas bem simplistas.

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O homem contemporâneo carece de lentes para auxiliá-lo a enxergar os deuses que o rodeiam, e aqui deuses são manifestações arquetípicas com conteúdos energéticos de pólos opostos, que podem ativar a sombra ou trazer a luz para mostrar o caminho da individuação.

A função transcendente nesse caso pode se manifestar como um obstáculo que paralisa o ego temporariamente de seguir o caminho, até então apresentado como único possível.

Sísifo recebeu esses "obstáculos" como desafios e seu ego obsessivo fez com que ele canalizasse a energia para superá-los ao invés de tentar entendê-los como possibilidade de integrar seus conteúdos inconscientes.

Os deuses contemporâneos se apresentam nos menores detalhes, nos processos de sedução que se desdobram em assedio moral, na carreira meteórica que pode trazer um câncer consigo, na desumanização das relações, eliminando todas as possibilidades de respeito. No mito de Sísifo, os deuses Tânatos, Ares, Hades e Hermes se apresentam aparentemente como os obstáculos a serem vencidos, porém na realidade eles representam a oportunidade de redenção se observados de forma intuitiva.

  1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIERLEIN, J. F. Mitos Paralelos. Ed. Ediouro, 2003.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega, Ed. Vozes, 1996.

BRENNAN, Anne e BREWI, Janice. Arquétipos Junguianos, A espiritualidade na meia-idade. Ed. Madras, 2004.

GRINBERG, Luiz Paulo. Jung, o homem criativo. FTD, 1997

JUNG, Carl Gustav. O Eu e o Inconsciente in Obras Completas, Vol. VII/2. Ed. Vozes, 16ª Ed., 2002

JUNG, Carl Gustav. Fundamentos da Psicologia Analítica in Obras Completas, Vol. XVIII/1, Ed. Vozes. 10ª Ed. 2001

JUNG, Carl Gustav. (Org.) O Homem e seus Símbolos. Ed. Nova Fronteira, 1977.

JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos e Reflexões. Ed. Nova Fronteira, 1975.

JUNG, Carl Gustav. Símbolos da Transformação. Ed. Vozes, 1975.

KAST, Verena. Sísifo. A Mesma Pedra-Um Novo caminho. Ed. Cultrix, 10ª Ed., 1997

MAGALDI, Waldemar. Dinheiro, Saúde e Sagrado. Eleva Cultural, 2ª Ed., 2009

SILVEIRA, Nise da. Jung, vida & obra. Paz e Terra, 18ª Ed. 1997.

Avaliaçãoo mídia: 5 (3 Votos)

Não pode comentar este artigo